sábado, maio 29, 2010

No meu tempo é que era mar!



O meu avô materno, antigo combatente da “Grande Guerra”, como se convencionou chamar ao conflito que aterrorizou a Europa entre 1914 e 1918, costumava dizer-me, com um brilho de saudade complementado por uma lágrima furtiva quando a vida se aproximava do fim: “No meu tempo é que era mar!”. Tinha sido útil à causa que derrotou os alemães transportando soldados portugueses para os portos franceses e eu, miúdo, levei para aí dez anos a perceber que o mar era o mesmo, os barcos é que não eram grande coisa. Foi o que lhe disse quando finalmente percebi, arrostando com o mau humor de um homem justo. Terá sido, digamos, a minha primeira atitude de “sinal contrário”, a primeira de milhões delas que me acompanham na vida como uma praga de gafanhotos. Feitios, dirão alguns, coisas da vida, digo eu.


Tudo isto a propósito de uma prosa sem pretensões que me propus escrever para o blog do Carlos Godinho, meu companheiro de algumas andanças com a Selecção Nacional de futebol e que comigo partilha, neste momento, as vistas esmagadoras da Serra da Estrela, palco de um estágio que nos levará, dentro em pouco, para a aventura do Mundial sul-africano. E o tema foi encontrado quando ele se lembrou de evocar uma fotografia inolvidável de Matateu, o Lucas para os amigos, tirada aqui na Covilhã, numa tarde em que o Belenenses defrontou o Sporting local, clube de ricas tradições que sofre, como tantos outros, os sinais destes tempos. Evocou e publicou, que não é homem de deixar as coisas a meio.


Nasci em Pedrouços, sou do Belenenses, por lá dei uns pontapés na bola numa época em que o “seccionista” era Mário Macedo, jornalista de A Bola por onde passei e que não esqueço. José Pereira, Pires, Figueiredo e Moreira; Carlos Silva e Vicente; Dimas, Di Pace, Perez, Matateu e Tito. Ai que saudades, ai, ai, como imortalizou o Carlos Pinhão uma das muitas coisas brilhantes que escreveu. Era mesmo assim, três defesas, dois médios e cinco (!) avançados, mesmo que os treinadores não fossem malucos e, neste caso, Fernando Riera tivesse o cuidado de ter o Vicente a “dar uma mão” à defesa. Tão bem que o irmão mais novo do Lucas foi “Magriço” mais de dez anos depois do episódio que vou recordar. Porque, naquele tempo, é que o mar era mar...


Riera, o chileno, inovou em Portugal. Abriu uma escola de jogadores no Belenenses, que evoluía no “campo de treinos” das Salésias, conquistou as pessoas e construiu uma senhora equipa, “destinada” a ser campeã nacional, tal a superioridade alardeada ao longo desse campeonato. Já imaginávamos a repetição da jornada gloriosa de Elvas, em 1946, “quando o Rafael mordeu a terra do campo e marcou o golo da vitória, o golo do campeonato, apesar do Benfica ter mandado para lá o Valadas treinar os locais durante uma semana”. Cá por mim, com quatro anos de idade, limitei-me a acompanhar a minha Mãe, que foi ao Cais do Sodré esperar o meu Pai, um dos heróis que acompanharam o “Rasga”.


E o momento chegou. Um Belenenses-Sporting a contar para a última jornada do campeonato e onde nada podia falhar. As escolas foram o supporting act dessa tarde, com o primeiro relvado de Portugal a rebentar pelas costuras e a história dos noventa minutos conta-se depressa: o Belenenses empatou a dois golos, quando necessitava de ganhar, vitima de um golo de Martins, que recargou com êxito uma remate fulminante de Mokuna, “o fura-redes” que pouco mais fez na nossa terra do que lixar a vida aos meus. Argumenta-se que o árbitro não foi dos melhores e tem-se a certeza, isso sim, de que Otto Glória, na sua primeira temporada em Portugal “não teria sido ninguém” se o Martins não tivesse feito aquilo. Mas fez, o Benfica ganhou ao Atlético (3-0) e o resto pertence à história.


Eu, desolado mas conformado, nunca mais esquecerei as palavras de Matateu - com quem mais tarde vim a jogar bilhar da delegação do clube na Avenida da Liberdade -, na mal cuidada pista de atletismo das Salésias, palco das proezas de Georgette Duarte: “Fica para o ano, fica para o ano”. Tudo em paz, com muita lágrima à mistura porque um homem não é de ferro, não passando pela cabeça de ninguém que a vida acabava ali, que o futebol era coisa de que se devia desconfiar, não se imaginando que, muitos anos depois, existissem claques duvidosas, gente que gostará pouco da modalidade desportiva do planeta, servindo-se dela e servindo-a pouco.


No meu tempo é que era mar.


António Florêncio


Um texto brilhante do António Florêncio que pretendeu dar a conhecer um pouco das suas extraordinárias memórias.

1 comentário:

  1. Um abraço ao xouricinho.Com as barbas brancas e o chapeu encarnado mais parece um Bombeiro Voluntário. FORÇA BELÈM

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