Estas três palavras andam por vezes tão separadas que mais parecem pertencer a três diferentes idiomas. Quando ouvimos as claques insultar os adversários em linguagem rasteira ou quando tomamos conhecimento de actos de corrupção ou de deturpação da verdade desportiva, é difícil associar ao futebol os conceitos de cultura e de democracia. No entanto, ao longo da minha vida profissional, grande parte dela passada no mundo da edição, por diversas vezes me cruzei com o futebol. Vou referir dois desses fortuitos encontros.
Anos atrás, traduzi um livro de Ernesto Sábato, o grande escritor argentino, um dos indigitados crónicos para o Prémio Nobel da Literatura. Foi o romance «Sobre héroes y tumbas» que na edição portuguesa, com o acordo do autor, ficou «Heróis e Túmulos». Não foi trabalho fácil, pois tendo estudado o castelhano europeu, deparei com um texto cheio de argot porteño que só vim a decifrar com a ajuda de Sábato. - tendo-lhe confiado os problemas, mandou-me um glossário com termos que os dicionários de que dispunha registavam.
Contudo, o que me surpreendeu num intelectual de tamanha dimensão foi o rigor com que as suas personagens discorriam sobre futebol, descrevendo jogadas de confrontos históricos entre o Boca e o River Plate, evocando grandes jogadores... Vim depois a saber que Sábato, hoje quase centenário, pois nasceu em Junho de 1911, é um fervoroso adepto do Boca Juniors, o clube do mítico Diego Maradona. Hei-de voltar a falar de Ernesto Sábato e oxalá que seja a propósito da atribuição do Nobel – poucos escritores houve e há que tanto justifiquem esse galardão.
Num almoço que, há muitos anos tive com o grande musicólogo João de Freitas Branco e com o maestro Ivo Cruz no restaurante Belcanto, no Largo de São Carlos, Freitas Branco contou-me um episódio muito curioso ocorrido durante a vinda a Lisboa do grande violinista ucraniano David Oistrakh, que na altura era considerado o maior executante do mundo, sobretudo de compositores do repertório russo contemporâneo.
Logo após a chegada e a recepção protocolar, Oistrakh chamou Freitas Branco de parte e pediu-lhe para lhe arranjar maneira de ir ver o Eusébio jogar. Embora surpreendido pelo inusitado pedido, o maestro contactou o presidente do Benfica e logo foi disponibilizado um camarote para Oistrakh e Freitas Branco. Diz-se que, no final do concerto, o grande violinista não agradeceu pela segunda vez os aplausos do público do São Carlos, para poder chegar rapidamente ao estádio. No final do jogo,
Sobre o concerto
Havia nele a máxima tensão
Sabia a contenção e era explosão
Não era só instinto era ciência
Magia e teoria já só prática
Havia nele a arte e a inteligência
Do puro e sua matemática
Buscava o golo mais que golo – só palavra
Abstracção ponto no espaço teorema
Despido do supérfluo rematava
E então não era golo – era poema.
Futebol, democracia e cultura – palavras de idiomas diferentes e de distintos mundos conceptuais? Não necessariamente. Figuras míticas como Pinga, Pepe, Peyroteo, Eusébio, fazem parte da face luminosa do futebol. Bem sei que há a face oculta, aquela a que a luz solar nunca chega – claques, subornos, tráficos diversos… Hoje quis falar da sua face positiva, luminosamente inspiradora. Aquela em que o futebol nos reconcilia com a beleza da vida, dela fazendo parte. O futebol não tem de estar nos antípodas da cultura e da democracia.
(Carlos Loures)
Muito bom!
ResponderEliminarToca bem lá no fundo da alma.
César
ResponderEliminarTexto extrordinário que sensibilizou algumas pessoas dentro da selecção nacional. Os que sentem o futebol de uma forma ligeiramente diferente da maioria, sem fanatismos, só pela beleza do jogo.
É verdade Senhor Carlos,
ResponderEliminarcontinuação de um bom estágio para todos.